Texto escrito pela Profa. Dra Sheila Mendonça de Souza*
Há dezenas de milhares de anos nossos ancestrais Neandertais já tinham seus lugares de mortos, sepultando e cuidando dos seus ancestrais. Hoje, centenas de diferentes ritos funerários são praticados pelas muitas religiões humanas, e acompanham os mortos ao seu lugar de descanso final. Talvez impressos em nossos cérebros ancestrais, a relação afetiva e respeitosa com os que se foram tem sido testemunhada até mesmo entre animais.
Cemitérios são terras sacralizadas, lugares de respeito e reflexão. Lugares onde se retorna para rever, reviver e buscar a sabedoria para viver. Perturbar os mortos e seus lugares é uma conduta inadequada, criticada, até mesmo punida. Mas os lugares de mortos por vezes sucumbem ao tempo e a sucessão das camadas de vida que fervilha sobre a superfície deste planeta, cada vez mais acelerado em suas mudanças. O que é feito dos solos sagrados, do culto aos mortos, das suas festas e celebrações? Estamos deixando nossos mortos órfãos? Preservar respeitosamente lugares de mortos é um princípio, e independe da religião.
Preservar um lugar de mortos de grande valor histórico e arqueológico, é garantido por lei. Em tantos lugares do mundo hoje se defende o direito dos mortos de permanecer em seus lugares de descanso, onde repousam seus ritos sagrados, onde foram preparados e apaziguados, onde escolheram descansar. Mesmo a sua remoção cientificamente justificada tem sido objeto de discussão ética; seu retorno e reenterro em seus locais sagrados é bandeira de tantos povos originários. Exigimos e repatriamos, dando sepultura digna aos nossos, de diferentes maneiras, e em diferentes situações. O que está em seu
lugar, ali o deixamos.
Mas o que dizer da orfandade dos mortos, esgarçados pela passagem do tempo, perdidos de seus descendentes diretos no emaranhado de povos e lugares que os sucederam? Mortos órfãos, …quem é por eles?
Não se trata apenas das técnicas e leis para exumá-los, escavá-los, engavetá-los em museus, memoriais, ou criptas e mausoléus. Trata-se de voltar a perguntar: como lidamos com um lugar onde foram ritualmente sepultados seres humanos? Sim, pessoas que acreditavam, oravam, lutavam, amavam, sofriam, que se foram na certeza de ter seu descanso final respeitado, porque assim sempre deve ser. Trata-se de preservar O LUGAR, porque este, representativo, foi escolhido pelos que ali viveram para deixar seus filhos, avós, pais, heróis, mães, irmãos, irmãs…para todo o sempre.
Visitar os cemitérios, lembrar e festejar (ou chorar) os mortos é ainda a marca cultural de alguns povos atuais. Mas o que afasta a maioria de nós da morte? Por que deixamos, cada vez mais, nossos mortos órfãos? Porque os deixamos no esquecimento que permite que a cidade os apague para todo o sempre? A proteção de um sítio tão antigo como Camboinhas, representativo de um momento primordial da ocupação humana nesta parte do país, seria uma obrigação e um dever do Estado em qualquer lugar do mundo civilizado.
Inadmissível sua destruição, apagamento, esquecimento, ou destituição de valor.
Salvos do tempo por milhares de anos, ainda presentes, donos e testemunhas do incrível passado que viveram….deixá-los órfãos seria um erro inaceitável, além de uma decisão ética e cientificamente equivocada. Camboinhas é um cemitério. Um cemitério onde ainda estão aqueles que desbravaram este litoral.
Não deixemos órfãos mais estes mortos!
*A Profa. Dra Sheila Mendonça de Souza faz parte do nosso grupo de pesquisas desde 2021 e possui graduação em Medicina pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1975), mestrado em Anatomia Humana pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1991) e Doutorado Em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Publica Sérgio Arouca (1995). Atualmente é pesquisadora em Saúde Pública da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz onde respondeu por orientações de mestrado e doutorado por décadas, tendo recebido por suas contribuições à área o MENTORSHIP AWARD da Paleopathology Association em 2022. Conta com dezenas de publicações nacionais e internacionais sobre bioarqueologia, paleopatologia e temas afins. Tem experiência na área de Morfologia, com ênfase em Anatomia normal e patológica, atuando principalmente nos seguintes temas: paleopatologia, Brasil, paleoepidemiologia, arqueologia e pré-história de grupos costeiros do Brasil. Além das inúmeras publicações científicas, tem produção voltada para a divulgação científica na forma de livros e artigos, além de animes e depoimentos gravados. Colabora na produção de materiais didáticos e organiza eventos de divulgação e exposições de conteúdo científico, na qualidade de curadora. Organiza eventos nacionais e internacionais com destaque para o PALEOPATHOLOGY MEETING IN SOUTH AMERICA que já se encontra em sua nona edição. Vem atuando também na área do Ensino e da Gestão, coordenando programas de pós-graduação e cursos, áreas de pesquisa, projetos e outras atividades e setores institucionais.
Excelente artigo! Esse aspecto afetivo e ético do Sambaqui Camboinhas não pode e não será esquecido pelos que hoje vivem aqui.
Perfeito!