Inventário Participativo de Pessoas e Memórias: a experiência do Museu de Arqueologia de Itaipu na construção colaborativa de um projeto

Criado em 1977 dentro do território pesqueiro de Itaipu, o Museu de Arqueologia de Itaipu (MAI) passou a desenvolver trabalhos sistemáticos com o grupo de pescadores tradicionais do seu entorno mormente a partir de 2010. Desde esse período, o MAI tem procurado incluir em suas ações educativas e exposições informações sobre a importância sociocultural da pesca e dos pescadores dessa região. Este novo discurso museológico está diretamente associado ao trabalho e consciência crítica das equipes do MAI, mas também às novas diretrizes político-conceituais do campo dos museus que ganharam força no país a partir de 2003 com a criação da Política Nacional de Museus. Foi também decisiva para abertura do MAI às práticas de uma museologia comprometida com as comunidades de pescadores a promulgação da Lei 11.904, que institui o Estatuto de Museus e a criação do Instituto Brasileiro de Museus, órgão que passa a gerir o Museu a partir de 2009.

As primeiras ideias sobre um inventário participativo na região surgiriam da necessidade do Museu em discutir com os pescadores e moradores do Canto de Itaipu os sentidos atribuídos às várias referências culturais desse território. Foi preciso um período de discussões e de maturação interna para redimensionar e reorganizar os limites institucionais e as compreensões sobre as noções de patrimônio, acervo, cultura e participação. Estava claro tanto para equipe do Museu quanto para os pescadores e moradores de Itaipu que o discurso museológico centrado exclusivamente no passado arqueológico e desconectado das populações tradicionais que vivem secularmente nesse território já não era suficiente.

A partir de discussões, rodas de conversa e cursos promovidos pelo MAI em parceria com os pescadores e com universidades que já atuavam na região, foi identificado como prioritário para a preservação das memórias locais um projeto de captação de histórias de vida. Como em diversas comunidades tradicionais, as histórias, memórias e saberes da pesca artesanal não estão sistematizados de forma autoral em livros, arquivos, bibliotecas ou museus; são conhecimentos transmitidos fundamentalmente de forma oral, especialmente pelos mais velhos. Em Itaipu, as histórias de vida estão intimamente ligadas à ocupação do território, à formação das famílias e grupos de trabalho, ao desenvolvimento econômico e ao universo sociocultural local. As histórias de vida em Itaipu também se relacionam diretamente com a trajetória do MAI e não é possível pensar a instituição sem considerar o protagonismo dos pescadores no que diz respeito ao tombamento das ruínas do Recolhimento de Santa Teresa, à criação do Museu e à formação da coleção arqueológica.

A iniciativa de um mapeamento das memórias e saberes locais só é possível a partir de um entendimento lato sensu das noções de patrimônio e bem cultural, identificados e reconhecidos coletivamente. À diferença de outras ações de documentação, o inventário participativo propõe que os protagonistas do processo de musealização sejam membros da comunidade e não técnicos e especialistas, os quais, embora essenciais na sensibilização conceitual e na orientação técnica, não são mais os únicos responsáveis pelo conteúdo e resultado. As ações de um inventário participativo devem ser percebidas dentro de uma dinâmica de (re) conhecimento que varia ao longo do tempo de acordo com as necessidades do coletivo. A proposta primordial do inventário participativo, portanto, é a horizontalidade no processo de identificação do patrimônio.

O Inventário Participativo, que se pretende um programa contínuo nas ações do MAI, será desenvolvido inicialmente a partir da categoria Pessoas e Memórias e terá como metodologia basilar e técnica investigativa científica a História Oral, a partir da realização de entrevistas. A história oral como método tem como objeto o passado tal qual concebido por quem o viveu, ou seja, a partir de várias visões e interpretações do passado, o pesquisador poderá empreender uma análise comparativa sobre determinados acontecimentos e contextos, partindo do particular para o geral.

A execução do Inventário está dividida em etapas, sendo que a primeira delas é a mobilização e sensibilização da comunidade e dos parceiros. Serão realizadas reuniões para ajustar as etapas de execução do projeto de acordo com as demandas e indicações dos pescadores e moradores de Itaipu. Nestes primeiros encontros será elaborada, a partir de indicações da comunidade, a listagem inicial de quarenta (40) pessoas a serem entrevistadas. A escolha dessas pessoas, assim como o número total de entrevistas poderão sofrer alterações ao longo da realização do projeto, uma vez que o resultado da pesquisa e a relevância do material obtido só poderão ser avaliados uma vez que as entrevistas ocorram.

O contato com os entrevistados deverá ocorrer em dois momentos: o primeiro deles é o momento do convite e apresentação do projeto, quando ele será informado do teor e objetivos do Inventário e quando, então, em uma data conveniente, será acordada a realização da entrevista. Solicitar-se-á, também, que o mesmo tenha consigo, no dia da entrevista, fotos, objetos ou demais itens que lhe sejam caros e significativos. No dia, hora e local acordados, portanto, acontecerá a entrevista – que será filmada e gravada – levada a cabo por pesquisador contratado e norteada por um roteiro semiestruturado elaborado pelo corpo técnico do Museu de Arqueologia de Itaipu. Este roteiro é constituído de perguntas simples, encadeadas cronologicamente, que buscam articular as informações sobre a trajetória de vida com as relações e condições socioculturais de Itaipu.

Serão realizadas, ainda, no âmbito do Inventário três rodas de conversa no Museu, que buscarão reunir os moradores para discutir temas específicos, ainda a serem definidos, mas já sugeridos, tais como a relação dos pescadores e moradores com os diferentes patrimônios tombados da região (o próprio Museu de Arqueologia de Itaipu, a Igreja de São Sebastião, o Sambaqui da Duna Grande, a pesca artesanal, a paisagem do Canto de Itaipu) e com as unidades de conservação ambiental (Parque Estadual da Serra da Tiririca e Reserva Marinha Extrativista de Itaipu), ou ainda as relações de gênero e trabalho no território, identificando o papel e protagonismo das mulheres moradoras e pescadoras de Itaipu. Essas rodas de conversa também serão registradas e editadas. Além disso, serão realizados também cursos abertos a todos os públicos sobre registros audiovisuais e edição de imagens e sobre práticas de história oral.

O material audiovisual oriundo das entrevistas será sistematizado de diferentes formas: os áudios serão transcritos e os vídeos completos editados em vídeos curtos de 15-20 minutos. Os vídeos completos receberão tratamento de acervo digital do MAI e formarão uma nova coleção dentro do acervo museológico institucional. A transcrição deverá destacar os trechos relevantes e tal ação condicionará a edição das imagens. Estes produtos, além de integrarem o acervo técnico do MAI e serem facultados à pesquisa, serão disponibilizados em plataforma online colaborativa e, também, no site do Museu, de maneira a garantir visibilidade para a comunidade do Canto de Itaipu e para o MAI, além de funcionar como uma ferramenta de preservação da memória do local e de seus habitantes. Por fim, a partir dos resultados obtidos pretende-se elaborar de forma colaborativa com os agentes desse patrimônio, exposições e publicações.